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Há solidões na solidão

Atualizado: 9 de jan. de 2023

Resenha crítica sobre Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu

By Herbert Bandinni

Caio Fernando Abreu

Publicado em 1982 pela Editora Brasilense, a coletânea de contos Morangos Mofados, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, conseguiu unanimidade de público e de crítica.


Um dos primeiros livros de autor brasileiro a ser publicado na coleção Cantadas Literárias (projeto político-editorial da Brasiliense, voltado para o jovem leitor brasileiro), Morangos Mofados é uma obra-síntese de uma geração que se despede da utopia hippie e ainda não está preparada para a realidade yuppie, que viria logo a seguir.


É nesse universo em que a obra do Caio Fernando emerge. Os sentimentos de abandono, de degenerescência, de desbunde, de escapismos, próprios dos movimentos contestatórios das décadas de 60 e 70, que se prolongaram aos tardios anos oitenta, encontram-se em cada um dos contos da coletânea, assumindo uma feição de diário de uma geração que acreditou em um sonho e não o viu realizar-se.


O livro está dividido em três partes: O MOFO, OS MORANGOS e, por fim, MORANGOS MOFADOS, uma divisão que nos faz lembrar os procedimentos racionais para o conhecimento e solução de um problema: tese, antítese e síntese.


Duas dessas partes, por sua vez, contém, cada uma delas, nove contos. A terceira e última parte apresenta apenas um único conto - a desejada unidade indestrutível, a síntese (quase) absoluta, a saída (quase) perfeita: Morangos Mofados.


A sequência em que as partes se distribuem é inequivocamente intencional. Ha uma inversão da lógica natural dos fatos: o mofo aparece antes dos morangos, contrariando a lógica da síntese - morangos mofados. O MOFO é algo que se antecipa em ação, constitui-se em coisa real e independente em relação aos MORANGOS.


Sem dúvida, esse é um movimento de percepção de um mal-estar. É o despertar de uma consciência que passa a rever a fé fundamental que iluminou o projeto libertário da contracultura: paz e amor é uma quimera de quixotes-de-la-mancha. O sonho acabou:


(...) não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, burra, gorda, alienada e completamente feliz, cara[1]


O primeiro conto da primeira parte intitula-se Diálogo. Na verdade, é um monólogo - o monólogo no diálogo: o personagem A conversa com o personagem B (ad infinitum) e A & B, incomunicáveis, se fundem em seus questionamentos e indecisões: o que antes parecia claro, agora é escuro; o que antes parecia escuro, agora é claro. Essa dúvida, possivelmente, transparece em todos os contos da primeira parte, reforçando a ideia de decomposição, de frustração, de estranheza, de impossibilidades, de confusão... de mofo.


Os sobreviventes (para ser lido ao som de Ângela Ro-Ro) - segundo da coletânea conto-chave para entendermos a prerrogativa de que o sonho acabou - é uma coisa: fala por si. É uma entidade emblemática de uma consciência em extinção. É a real constatação de que o MOFO paira no ar, poderoso, silencioso e hábil.


Aqui, o ser é objetivamente abstrato e intencionalmente pronominal. Qual nome o pronome substitui? - A princípio, não há: serão sempre Ele e Ela.


Ao adentrarmos a leitura do conto e do livro, no entanto, acabamos por descobrir quais nomes aqueles pronomes poderiam substituir. O ele e o ela certamente não são nem o Jeca Tatu nem a Severina quase morta em vida. É bicho grilo, tresloucado, sobrevivente de um sonho acabado, levando, como pode, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Tereza de Calcutá.


Um homem e uma mulher monologam em um mesmo espaço (situação conhecida em Eu sei que vou te amar, filme do Jabor). Ele pretende ir a Sri Lanka (onde fica? - pouco importa). A anunciação de sua partida (escapismos?) gera o conflito, o abandono:


SRI LANKA, quem sabe? ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, e morram de saudade, não é isso que te importa? (...).


E diante dessa promessa, condenada a ficar... no mofo, Ela questiona:


(...) Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos, entre uma e outra carreira, pichando muros contra usinas nucleares (...).


Mais adiante, o Ele e o Ela se apresentam em um breve relato de suas vidas, contextualizando a obra:


(...) ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando disc-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem esquecer esse gosto azedo na boca.


E o conto prossegue em desesperos, decantando a dor, Ele e Ela querendo acreditar em todos de novo, desejando uma fé enorme em qualquer coisa que os faça acreditar em tudo de novo, qualquer coisa que afaste de sua boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza. E o desejo segue adiante, fracassando em seu intento:


(...) não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando.


A segunda parte, OS MORANGOS, traz como epígrafe um trecho de Os Morangos São Eternos, de Henrique do Vale:


"Quem conhece Deus sente as coisas internas e é amigo dos morangos que nunca morrem.


A epígrafe, por si só, já diz muito. Há aqui um desejo manifesto de resistência, de persistência, de conhecimento de si, de reavaliação, conforme veremos a seguir, no primeiro conto desta segunda parte: Transformações.


Esse desejo, no entanto, não está relacionado à possibilidade de manter viva a fé no ideário da contracultura enquanto projeto existencial e político.


Ao contrário, a leitura de Trans- formações aponta para eficácia e viabilidade desse projeto-sonho de um mundo paz e amor, muito sexo, drogas e rock and roll.


FEITO FEBRE, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria.


E essa sensação de que nada jamais daria certo acaba por se confirmar ao término do conto:


Alguma coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou ainda mais complicado. E mais real.


O peso dessa constatação torna-se mais evidente quando passamos a desdobrar os sentidos de Uma Fábula, subtítulo posposto ao nome do conto. Uma fábula subentende-se certa história fantástica de caráter moral. O moralismo aqui, no entanto, nada tem a ver com pedantismos diletantes. É antes uma consciência do certo e do errado. Uma avaliação em andamento dos prós e dos contras. Um balanço existencial em busca de saídas, consequências de transformações.


(...) Seu grande medo era o deste- mor que sentia. Integro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memórias ou fantasias. Mesmo o não-medo de sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas ou dos ares, teria quem sabe parâmetros para compreender esse quieto deslizar, peixe, ave. Criatura da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura do fogo, A Grande Falta crepitava dentro dele.


Por fim, chegamos aos Morangos Mofados, terceira e última parte de um livro-registro, com data e hora marcada, de uma geração.


A atmosfera do conto é certamente de adeus às fantasias apocalípticas anunciadas por cogumelos de Hiroshima e, sobretudo, por um desejo incontido de encontrar soluções para além de é- assim-que-as-coisas-são ou que-se-ha-de- fazer-que-se-há-de-fazer.


Em um certo momento do conto, mais precisamente em seu final, o personagem pergunta, absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: seria possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar um outro lugar em outro lugar? Frescos morangos vermelhos.


Achava que sim.

Que sim.

Sim.


Um morango verde doentio morreu. Um morango, ainda verde, marcado pelo gosto amargo do mofo, morreu. Mas os morangos são eternos, nunca morrem. Certamente, claramente, outros virão. Se não aqui, procurar um outro lugar em outro lugar. O que importa é que os morangos são eternos, como os sonhos. Um morango morreu, um sonho acabou, certamente, claramente, outros morangos e sonhos ressurgirão em terras férteis ou na solidão do cimento, e morrerão, de igual forma, um a um, na proporção em que nascem e se multiplicam. E nunca deixarão de existir morangos e mofos.


Assim termina o diário-projeto-sonho-político de uma geração que apostou no faça amor, não faça guerra. Esta última venceu, obrigando o bicho grilo a experimentar solidões na solidão!


[1] Os Sobreviventes, p. 17

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